Vereadores fazem ofensiva por religião nas escolas em ao menos 13 capitais

Disponibilizar Bíblia nas bibliotecas de escolas públicas e privadas ou usar o livro como material de apoio na sala de aula. É sobre esses temas que vereadores de ao menos 13 capitais têm apresentado projetos de lei pelo país. Especialistas afirmam que as propostas são inconstitucionais.
O que aconteceu
Propostas buscam autorização para "intervalos bíblicos", como são chamados os devocionais. Levantamento feito pelo UOL mostra que há projetos de lei para autorizar os momentos de louvor e oração na hora do recreio em quatro capitais, incluindo São Paulo. Em São Luís, a proposta é criar "espaços para meditação religiosa". A capital maranhense também tem um projeto para autorizar cultos e ritos religiosos voluntários nas escolas.
No mês passado, a Câmara de Belo Horizonte aprovou uma proposta que libera a Bíblia como material de apoio. Segundo a autora do projeto, Flávia Borja (DC), o tema surgiu porque a "Bíblia é o livro mais lido, mais vendido e mais publicado em todo mundo". A vereadora nega que a lei seja inconstitucional. Ela se baseia em um dos artigos dela, que diz que nenhum aluno é obrigado a participar das atividades. "Não fere a laicidade do Estado, apenas permite que a Bíblia seja consultada como material de apoio", afirma. O texto aguarda sanção do prefeito Álvaro Damião (União).
Vereadores de seis capitais tentam emplacar projeto da mesma temática. Segundo o vereador João Padilha (PL), responsável por protocolar a proposta na Câmara de Florianópolis, a "preocupação é garantir a proteção jurídica aos professores e diretores que querem usar a Bíblia nas escolas". No momento, a Comissão de Educação analisa o texto, que tem sido bem avaliado, segundo Padilha, já que "70% da população se declara cristã".
Os autores das propostas defendem que os projetos podem fomentar a cultura de paz e diminuir o bullying nas escolas. "É algo que a gente quer garantir. Vivemos em um Brasil muito estranho. Às vezes, o óbvio precisa ser defendido", afirma Cézar Leite (PL), vereador em Salvador e autor do projeto de indicação sobre intervalos bíblicos. O "óbvio" a ser defendido, segundo ele, é o "direito do cidadão de professar sua fé". Ele e outros vereadores reforçam que o Estado é laico, "mas não proibitivo". A proposta aguarda aprovação do prefeito Bruno Reis (União).
Além da "proteção jurídica e legislativa", os vereadores justificam que o Estado é laico e, por isso, as propostas não violam a Constituição. "Temos contato com um grupo de mães que já participam desses intervalos bíblicos. É só manter uma convivência respeitável, já que a proposta é voluntária ", afirma a vereadora de Goiânia Leia Klébia (Podemos).
Especialistas consultados pelo UOL afirmam que é exatamente por serem propostas religiosas em escolas que elas são inconstitucionais. Além disso, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) também assegura a "laicidade" nas escolas públicas. "Levar uma vertente de pensamento que não é baseada na ciência, que é uma interpretação de mundo, não cabe", afirma Ângela Sogilo, doutora em psicologia e professora sênior da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade de Campinas).
Propostas refletem o fortalecimento da direita e da agenda religiosa no país, afirma especialista. João Marcelo Borges, consultor sênior de educação da União Europeia, ressalta que o "Brasil não é um país cristão, mas um país de maioria de cristãos declarados". "Vejo como mais um movimento que tem outros exemplos, como o Escola sem Partido, a militarização das escolas. Tudo isso faz parte de um objetivo maior de dominação e doutrinação no âmbito das escolas, que é exatamente o que parte desse grupo critica", diz.
A leitura de um trecho bíblico não favorece em nada o desenvolvimento. Pelo contrário, o texto religioso, seja qual for, se baseia em dogmas, ele não favorece aquilo que é função da escola, que é o desenvolvimento do pensamento crítico e emancipado. [...] A escola pública não pode ser terra de ninguém. Ela se orienta pelos princípios constitucionais, e isso deve ser preservado.
Ângela Sogilo, professora sênior na Unicamp

'Sou cristão'
A maioria dos vereadores com propostas de cunho religioso é ligada a igreja evangélica ou à católica. "Se alguém me falar que o pessoal do Islã quer um espaço no intervalo da escola, eu vou dizer: "faz um espaço. Mas eu sou cristão", afirmou o vereador de Salvador. Para Leite, não liberar o intervalo bíblico é que seria um "entendimento mais ideológico".
Em anos anteriores, o STF (Supremo Tribunal Federal) já reconheceu leis nesse sentido como inconstitucionais. Em 2021, a Corte declarou inconstitucional uma legislação de Mato Grosso do Sul que tornava obrigatória a disponibilidade de Bíblia nas escolas. Em Pernambuco, o debate foi parar no Ministério Público, que abriu um procedimento para evitar "excessos". Na Paraíba, em 2022, a Justiça julgou inconstitucional uma lei de Campina Grande que sugeria a leitura da Bíblia nas escolas.
Borges diz que não há evidências científicas que mostrem que propostas como intervalo bíblico diminuam a violência escolar. Em relação à Bíblia como material de apoio, ele ressalta o impacto no dia a dia dos professores. "Nossos professores mal têm dado conta do currículo obrigatório, agora serão obrigados, sob pena de pressão [dos pais ou da direção escolar], a usar a Bíblia. É uma proposta que não entende a educação nem como fazê-la com qualidade e que desrespeita os professores", afirma.
Colocar a Bíblia como material didático pode ser o primeiro movimento cujo próximo passo é inserir o criacionismo [tese de que o Universo foi criado por uma intervenção divina] no ensino da biologia. Todos nós queremos reduzir o bullying dentro das escolas, mas essa proposta não traz evidência nenhuma de que contribua para o fim da violência.
João Marcelo Borges, consultor sênior da União Europeia
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